A Norma Irrevogável

Para alguns, a Norma n. 04/1995, aprovada pela Portaria nº 148, de 31 de maio de 1995, expedida pelo Ministério das Comunicações, é a certidão de nascimento da Internet no Brasil. É o Ato Normativo que formalmente reconhece a existência do Serviço de Conexão à Internet (SCI) como um autêntico Serviço de Valor Adicionado (SVA). Por óbvio, a Norma 4 não está inserida no § 4º artigo 60 da nossa Constituição e, portanto, não é cláusula pétrea a impedir qualquer discussão que se faça sobre a sua existência e atualidade.

Tudo comporta aprimoramento, ainda mais num setor tão dinâmico quanto o das telecomunicações. Ocorre, entretanto, que a revogação da Norma 4 pressupõe que o SCI, tal como descrito em 1995, tenha deixado de existir ou mesmo pretensamente tenha sido absorvido pelo Serviço de Comunicação Multimídia (SCM). Isso rigorosa e tecnicamente não é verdade. O conceito do Serviço de Conexão à Internet, em que pese a evolução tecnológica, permanece íntegro e, assim, apartado dos serviços de telecomunicações que lhe dão suporte, mas com os quais não se confunde.

É preciso deixar claro que, assim como o SCM é uma espécie do gênero Serviço de Telecomunicações, o SCI é uma espécie do gênero Serviço de Valor Adicionado (SVA), talvez o mais importante deles, mas dentro de uma infinidade de outros SVAs que são oferecidos pelos Provedores Regionais de Conexão à Internet (ISPs) ao mercado.

O tema da Simplificação e Transparência Regulatória consta do item 25 da Agenda Regulatória da Anatel para o biênio 2021-20221, a partir do qual foi elaborada a proposta de Regulamento Geral dos Serviços de Telecomunicações (RGST), além de outras alterações (Processo nº 53500.059638/2017-39). Tal item originou a Consulta Pública n. 41, de 06 de junho de 20222.

Em síntese, a ideia é unir num só regulamento os seguintes Serviços de Telecomunicações de interesse coletivo, sem prejuízo de outros definidos na regulamentação: (i) Serviço Telefônico Fixo Comutado – STFC; (ii) Serviço Móvel Pessoal – SMP; (iii) Serviço de Comunicação Multimídia – SCM; (iv) Serviço de Acesso Condicionado – SeAC; e (v) Serviço Móvel Global por Satélite – SMGS.

Segundo o art. 62 do Regimento Interno da Anatel (Resolução nº 612, de 29/04/13), os atos de caráter normativo da Agência, em regra, deverão ser precedidos de Análise de Impacto Regulatório (AIR). Assim, todo o processo administrativo que visa a alguma alteração ou criação de regulamento deve conter um Relatório de Análise de Impacto Regulatório (RAIR).

De acordo com a própria AIR, disponível no Processo nº 53500.059638/2017-394, as análises técnicas têm suas conclusões fundamentadas nos debates promovidos pelo grupo de trabalho responsável pela sua elaboração e não reflete necessariamente a posição final e oficial da Anatel, que somente se firma pela deliberação de seu Conselho Diretor.

Entre os temas do RAIR, o Subtema 2.3: Serviços de Telecomunicações e o Provimento de Conexão à Internet Fixa é, talvez, o mais polêmico ponto trazido com a Consulta Pública n. 41.

Depois de transcrever o artigo 3º. da Resolução n. 614, de 28/05/2013, que tanta dor de cabeça vem dando aos ISPs, afirma contraditoriamente:

Deste modo, inexistem dúvidas de que a definição do SCM incorporou o provimento de conexão à internet a seu escopo, ou seja, a conexão à internet pode ser inerente à prestação do SCM. Por outro lado, o Serviço de Conexão à Internet - SCI, nos termos da Norma nº 4/1995, do Ministério das Comunicações, até o momento resta preservado, mesmo quando o serviço de telecomunicações ofertado for o SCM. Desta forma, atualmente, a conexão à internet pode ser feita como um componente da prestação SCM ou, em separado, como Serviço de Valor Adicionado - SVA, de acordo com os termos da Norma nº 4/1995. Grifou-se.

Feita a introdução do tema, a AIR diz que o problema a ser resolvido reside no suposto “desalinhamento no atual arcabouço normativo quanto à classificação da conexão da internet como um serviço de telecomunicações e/ou como um serviço de valor adicionado, bem como falta de clareza sobre quais serviços de telecomunicações podem permitir a conexão de seus usuários à internet e em que contextos.”

Como toda a AIR, uma vez descrito o problema, enumera e discorre sobre quais seriam as alternativas para resolvê-lo, sinteticamente enumeradas abaixo:

A propósito da chamada diferença tributária, a AIR diz que a existência dos dois serviços (SCM e SCI), gera “diversas incertezas e questionamentos jurídicos, uma vez que a natureza tributária dos dois é distinta na legislação brasileira. Enquanto sobre os serviços de telecomunicações incidem, por exemplo, o ICMS e as taxas e contribuições setoriais, o SVA sujeita-se ao ISS”.

Cumpre esclarecer que o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n. 334, que é tão esclarecedora quanto simples: “O ICMS não incide no serviço dos provedores de acesso à Internet.” Ocorre que, ao contrário do que inclusive vem sendo dito na imprensa, sobre o SCI também não incide ISS, uma vez que nem a Lei Complementar 116/2003, nem a que lhe acrescentou alguns outros serviços, a Lei Complementar 157/2016, não contemplaram o SCI, que continua não inserido na Lei e, portanto, sem sofrer a incidência do ISS.

Não obstante a importância da questão tributária e suas consequências nos planejamentos empresariais dos ISPs, importa aqui referir o equívoco conceitual cometido pela AIR quantos aos aspectos técnicos. E foi com base em premissas equivocadas que, ao examinar as alternativas postas, a Área Técnica da Anatel aposta nas alternativas “B” e “C”, isto é, substituir a Norma 04/1995 e incentivar as fazendas a reduzirem a diferença tributária, coisa que, segundo o RAIR seria “... o mais adequado, uma vez que isso gera a simplificação regulatória de como a conexão à internet é feita no Brasil, não afetando o modelo de governança da internet, gerando segurança jurídica, reduzindo a arbitrariedade tributária e removendo vantagens competitivas assimétricas.” Será?