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Marco Neves Ferreira

Reflexões sobre o que vem, o que deveria vir e o que desejamos que venha a seguir à pandemia da covid-19, sobre o medo da morte, quem salvar, ecologia, limites do Estado e a angústia do isolamento. Uma pequena ajuda da filosofia para a quarentena.

Vivemos dias estranhos e uma pandemia com características inéditas, mas as questões que emergem são iguais às de outras crises: o medo da morte, quem salvar, o poder do Estado, o confronto com nós mesmos, as marcas que vai deixar, se a seguir virá um “mundo novo”.

Procurámos respostas junto de 11 professores de Filosofia e bioeticistas portugueses, todos fechados em casa de quarentena, do Norte ao Sul e Açores, dos 45 aos 91 anos, de esquerda e de direita, com visões distantes da vida, da sociedade e da própria filosofia. Não encontrará aqui consenso, muito menos a verdade. Em alguns casos, não encontrará sequer respostas. A filosofia, avisa Maria João Mayer Branco, professora na Universidade Nova de Lisboa — e a mais nova de todos os ouvidos pelo PÚBLICO — “faz sobretudo perguntas”.

Uns respondem que não haverá um “mundo novo” depois da pandemia da covid-19. A filósofa Maria Filomena Molder, 69 anos, antiga professora na Nova de Lisboa, fá-lo em forma interrogativa: “Entre 1918-1919 (terá começado em 1917 nos acampamentos de guerra), a pneumónica vitimou aproximadamente 100 milhões de pessoas, sobretudo jovens adultos, entre eles Amadeo de Souza-Cardoso. Depois o mundo ficou muito diferente do que era? O nazismo forjou-se no decénio seguinte, tendo o horror dos seus efeitos actuado pelo menos até 1945. Nos anos seguintes, o mundo ficou muito diferente?” António de Castro Caeiro, 53 anos, professor de Filosofia Antiga e Fenomenologia, também na Nova, usa uma forma crua: “As pandemias existem desde as Historiae de Tucídides, livro II. Enquanto estiver viva, a pandemia cria ansiedade, muda os comportamentos, é como o dia seguinte a relações desprotegidas ou a uma bebedeira. Depois, dilui-se com o tempo.”

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Turistas numa rua de Lisboa DANIEL ROCHA

As mudanças pós-pandemia

Outros, como José Gil, 80 anos, autor do *bestseller* Portugal, Hoje: O Medo de Existir (Relógio d’Água, 2004) — e que há dias escreveu um ensaio sobre a “angústia da morte absurda” no qual defende que esta crise é “um aviso do que nos espera com as alterações climáticas​” —, dizem que “não haverá um mundo novo, mas um mundo em conflito com forças novas, motivações novas, a manifestarem-se”.

Outros, no entanto, antecipam mudanças bem tangíveis. “A nossa maneira de estar no mundo vai mudar”, diz Maria Luísa Portocarrero Silva, 65 anos, catedrática da Universidade de Coimbra, especialista em fenomenologia hermenêutica e ética aplicada. “Acentuar-se-á a necessidade da formação ética da maioria das consciências. Temos vivido sob o paradigma estrito da eficácia e rentabilidade. O filósofo alemão Hans Jonas indica [em 1979], em O princípio da Responsabilidade, a urgência de uma nova ética apropriada à civilização tecnológica. Hoje esse prognóstico ainda é pertinente e as suas recomendações imprescindíveis.” A professora está convencida de que “viveremos uma situação semelhante à de um pós-guerra”. Filosoficamente, diz, “isto implica uma tomada de consciência da nossa finitude e da condição falível do humano, apesar dos grandes progressos da ciência”. É forte o contraste, nota, em relação ao ponto em que estávamos antes da pandemia, “quando algumas teorias científicas e filosóficas do Ocidente, como o movimento transhumanista, prometiam que em pouco tempo ‘a morte seria vencida’”.

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José Gil: "[depois da pandemia] não haverá um mundo novo, mas um mundo em conflito com forças novas, motivações novas, a manifestarem-se” DANIEL ROCHA

Para Viriato Soromenho-Marques, 62 anos, catedrático da Universidade de Lisboa e “ambientalista ininterrupto desde 1978” — sublinha —, o problema não é a imortalidade. O que o preocupa é a “doença, talvez mortal e irremediável, da nossa civilização” que “é o delírio da indústria de negação da morte”: “Não se trata do aumento da longevidade, mas do absurdo de prometer a duração ilimitada da vida individual, ao mesmo tempo que se destrói sem dó nem piedade o Sistema-Terra que é o suporte fundamental da vida humana”. Que mudanças antecipa o filósofo para o pós-pandemia? “A normalidade, como a conhecemos antes, não voltará a reconstituir-se. As forças que nos conduziram a este caos, que apenas está a começar, não estão preparadas para outra coisa que não o aumento da desordem. O ‘novo mundo’ que nascerá depois da crise, de duração e dimensão difíceis de aquilatar, vacilará entre a entropia e a reforma. Se olharmos para as actuais lideranças das democracias, de Donald Trump e Boris Johnson, a Jair Bolsonaro, passando pelos paroquiais e assustados regedores dos países da União Europeia, é difícil encontrar sequer a sombra da inteligência e capacidade de coordenação necessárias para mitigar os danos e sofrimentos inevitáveis. A possibilidade de colapso por implosão ou fragmentação (da União Europeia, por exemplo) é imensa. O nosso absoluto dever é lutar pela reforma. Precisamos de uma grande estratégia mundial para garantir a paz, reinventando o nosso habitar económico e social da Terra.”

Maria do Céu Patrão Neves, 60 anos, da Universidade dos Açores, catedrática de Ética, investigadora de ética aplicada e perita em ética da Comissão Europeia, e que coordenou a colecção de 12 volumes Ética Aplicada (Edições 70), fala de “um novo mundo digitalmente formatado”. Era um “processo em curso”, mas que agora “acelerou vertiginosamente”: “O quotidiano tenderá a reinstalar-se, mas novos modos de inter-relação permanecerão. As repercussões serão profundas na organização das instituições, nas actividades comerciais e económicas, com grande impacto no trabalho e na mobilidade”. Especialista em bioética, Patrão Neves antecipa ainda “alterações significativas” na prática médica e nas relações sociais (nas quais “a mediação tecnológica irá substituindo as emoções da proximidade física”) e “uma maior responsabilização individual pela saúde”.

Marcas já visíveis

Também João Cardoso Rosas, 57 anos, professor de Filosofia Política na Universidade do Minho, concorda que haverá um “novo mundo” pós-crise da covid-19. Explica porquê: “É um acontecimento único nas nossas vidas e na História mais longínqua. A globalização faz desta epidemia um evento global. Noutros momentos de acentuada entropia social — epidemias, catástrofes naturais e guerras —, as zonas de crise eram circunscritas e permitiam sempre a fuga a partir de dentro ou o auxílio a partir de fora. Neste caso, a crise está em todo o lado e por isso não há fuga possível nem auxílio externo suficiente.”